sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Todas as Cores da Caatinga


Influenciados pelas recorrentes imagens de seca e pelo significado de Caatinga(caa=mata, tinga=branca), tendemos a acreditar num sertão nordestino quase monocromático, de um bege pálido, cor de vegetação ressequida e poeira. Mas não é bem assim. Não para as dezenas de artesãos de Santa Brígida e Serra Branca, na Bahia. Eles desmentem essa visão um tanto limitada com sua arte, ao extrair uma variada gama de cores das plantas da Caatinga para tingir suas peças de cestaria.
O belo tom de verde-musgo, por exemplo, vem do são-joãozinho ou besourinho (Senna macranthera); o avermelhado e o alaranjado saem do urucum (Bixa orellana); dois tons de amarelo são obtidos de plantas locais, popularmente apelidadas com nomes de espécies globalizadas, o açafrão e o algodão; o roxo é feito com jenipapo (Genipa americana) e por aí vai. Todas essas cores – mais as muitas misturas entre elas – são aplicadas à palha do licuri (Syagrus coronata), depois enrolada, trançada ou amarrada e transformada em bolsas, sacolas, tapetes, descansos, cestas para pães e objetos de decoração. As peças são exclusivamente tratadas com corantes naturais, sem uma gota de tintas químicas.
Os primeiros artesãos herdaram o conhecimento tradicional sobre as plantas-corantes e as técnicas de tingimento de seus pais e avós. Os novos artesãos somaram criatividade e a capacitação promovida desde 2006 pela Fundação Loro Parque (da Espanha) em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), com apoio do Instituto Arara Azul e da Tam.
José dos Santos Braga, mais conhecido como Zé de Rita, é um dos artesãos mais antigos. Ele foi o primeiro a compartilhar seu saber com os moradores de Serra Branca, a pedido de Simone Tenório, coordenadora do projeto. “Eu o convidei para ir à Serra Branca com o intuito de apresentar uma alternativa de geração de renda para a população. Como Santa Brígida, Serra Branca é área de alimentação das araras-azuis-de-lear (Anodorhynchus leari), uma espécie muito ameaçada pelo tráfico e pelo corte da palmeira licuri, seu principal alimento”, explica Simone.
Com o estímulo à produção de artesanato, as palmeiras deixam de ser cortadas, as araras-de-lear se alimentam de seus frutos e os artesãos utilizam suas folhas. O número de folhas retiradas por palmeira é limitado a duas a cada 90 dias, para não prejudicar a planta e garantir a sustentabilidade da atividade, em longo prazo.
Após o primeiro contato, os artesãos das duas localidades passaram a trocar informações e criaram associações com estatutos comuns, preços comuns e peças comuns, com a mesma qualidade e o mesmo padrão. Assim, se eles recebem uma encomenda muito grande, não saem pela Caatinga pondo as palmeiras abaixo: eles dividem os pedidos entre os grupos para todos ganharem e todos respeitam a capacidade de suporte estabelecida para cada localidade.
Eles dividem até os resultados de experiências com novas cores, como a “fórmula” para um vermelho mais forte, feito da combinação entre o amarelo obtido do algodão com a tinta da casca de castanha de caju (Anacardium occidentale). Quem descobre uma tonalidade com boa aceitação, logo trata de passar a dica adiante, partilhando o sucesso com os vizinhos e com os artesãos da outra associação.
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Cada cor é preparada em uma panela com água fervente, na qual se mergulha a palha seca das folhas de licuri. Em alguns casos, é preciso adicionar suco de limão à água para firmar a cor. “Cada tipo de planta ‘pinta’ diferente: umas ‘pintam’ com a folha, outras com a flor, outras com o fruto e outras com a base, a casca…”, resume Claudylene Narciso dos Reis, de 19 anos, moradora de Serra Branca, neta e filha e artesãos. “A parte da planta que ‘der cor’ a gente usa”.
Nem todas as plantas-corantes ocorrem nas duas localidades. Então a troca de mudas e sementes também acontece. “Se não tem exatamente no lugar onde os artesãos moram, eles pegam de outros povoados. Vão buscar na Caatinga o que é da natureza e tem gente que planta no quintal de casa para não precisar ir muito longe”, conta Claudylene. E logo emenda: “o são-joãozinho tem no quintal lá de casa, já dá para tirar uma corzinha. Urucum também tem. Minha mãe e meu pai ‘pintam’ todo dia. Eu já aprendi e quero aprender mais”.
“O melhor de tudo foi resgatar um artesanato local que possibilitou às pessoas mudar de atitude, passando a ver a Caatinga de uma maneira diferente, sem achar que é um atraso ter Caatinga ao lado de casa. Passaram a se preocupar com o lixo, a ver que eram exemplo para outras pessoas. As mulheres, que antes não tinham trabalho e só viviam de bolsa-família, agora têm orgulho porque são artesãs e sua renda aumentou 200%”, conclui Simone Tenório.
Ainda podemos acrescentar, sem medo de errar: para onde quer que as peças sejam levadas, no Brasil ou no Exterior, esse artesanato de qualidade também nos ajuda a trocar o preconceito de uma Caatinga monocromática e coitadinha por um cenário mais colorido e com mais perspectiva.
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Fotos: Tietta Pivatto/Instituto Arara Azul (palhas de licuri tingidas, ao alto, e fruto de algodão mais flores de São-Joãozinho, no centro)

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